Houve um tempo em que a Dona Camila recebia a visita dos netos 2 ou 3 vezes por mês. Lá na terreola, os pequenos iam à mercearia do Sr. Manuel comprar guloseimas. À ida, o Fontes perguntava-lhes pelo pai. Mais tarde, lá se reuniam para tomar um copo e por a conversa em dia. A filha da Dona Camila, a Clara, aproveitava para mostrar aos pequenos o que era um grilo e como se apanhavam cerejas. Todos ajudavam a Dona Camila na lida da casa, pois o Sr. Afonso, de idade mais avançada, requeria outros cuidados. Depois de um fim de semana com arroz no forno e cozido à portuguesa, era hora de regressar. A bagageira levava batatas, azeite, penca e fruta variada – coisas da terra, daquelas que se compradas na cidade, não teriam o mesmo sabor.
Já o Januário, dono do restaurante local com o mesmo nome, tinha a sala cheia. Aos fins de semana tinha sempre gente em viagem, de distritos vizinhos, que por ali paravam para o repasto. O Zeferino, que abastecia o Januário de charcutaria, vendia chouriça que se fartava. Apesar de longe do litoral, o bom pescado também marcava presença no restaurante, directamente da lota.
Esta história é fictícia, mas podia ser real. Representa uma rotina de milhares de pessoas, que se movimentam das cidades de trabalho para as terras do interior, onde muitas vezes têm pais ou avós a ansiar por uma visita familiar. Mas também representa o comércio local, e os agentes que têm de se deslocar diariamente, para o manter em funcionamento.
Estes 2 contextos – o social e o comercial – estão a ser destruídos de forma lenta e agonizante, pelas vias de comunicação portajadas. Eu não sei qual é o valor económico gerado por um ano de portagens em todo o país. Deve ser muito dinheiro.
Mas em compensação, qual será o custo do esvaziamento populacional, social e económico do interior? Em termos práticos, qual será a receita não-gerada, devido ao facto de as vias serem portajadas com valores elevados? Quantos “netos” iam à terra ver os avós numa base regular, e deixaram de o fazer? Alguém já mediu essa perda? Quantas aldeias-fantasma não surgiram entretanto? E quanta mercadoria deixou de ser transaccionada, pelo constrangimento de pagar portagens, levando a falências? Quanto o comércio local foi afectado?
Para uma economia crescer – e o Estado ganhar mais – há que diminuir barreiras e alargar mercados (não isolá-los).
A viagem de ida e volta entre Aveiro e Vilar Formoso, pela A25, custa 29,80€. São 386 kms, e cada km representa 7,7cent de taxas de portagem. Junte-se isso ao combustível e à degradação da viatura, e certamente o fardo para o consumidor torna-se significativo. E é um esforço impiedoso. Mas as concessionárias parecem beneficiadas: mesmo quando as autoestradas estão em obras, limitando a circulação normal que as mesmas deveriam permitir, não há desconto nenhum para o utilizador (veja este artigo).
A existência de vias com portagem é compreensível, para o financiamento de infraestruturas. Mas para um país tão pequeno, temos muitas vias de comunicação… mas poucas alternativas de fuga às portagens. No segmento Porto-Aveiro, existem duas autoestradas quase paralelas, a A1 e a A29. E também são paralelas nos valores – ambas são pagas.
Mais do que pedir a extinção de portagens, as autoestradas deveriam adoptar um modelo de negócio semelhante às companhas aéreas low cost. Ou seja pagavam-se, mas ficavam mais baratas. Paralelamente tentar-se-ia aumentar o tráfego nas mesmas.
- As grandes autarquias distritais deveriam pagar às concessionárias, de forma a baixarem os preços ao consumidor final. Assim, mais pessoas poderiam passar fins de semana nos hotéis, descobrir a vida nocturna, preencher a oferta cultural e ajudar o comércio.
- O tecido industrial dessas zonas também deveria ser mobilizado nesse esforço, pois assim os seus camiões pagariam menos.
- As concessionárias, incentivadas por nova legislação, poderiam vender mais publicidade nos seus troços (sem prejuízo de condições de condução segura) e o lucro permitir a diminuição de custos para os utentes.
- As associações coordenadoras de turismo, poderiam promover Rotas específicas que seriam publicitadas nas autoestradas, incentivando ao tráfego nas mesmas. Em alguns casos (porque não?), o início e fim dessas rotas poderiam ocorrer em estações de serviço, onde os carros ficariam estacionados em segurança, e os aventureiros iriam conhecer as maravilhas locais.
- Novas estratégias de engagement poderiam surgir, desde feiras em estações de serviço (ex: roupa em 2ª mão antiguidades, mostras de produtos regionais) ou semanas gastronómicas (com pratos locais), wi-fi gratuito nos estacionamentos…
O valor pago nas portagens deveria ser mais do que uma fonte de rendimento. Deveria reflectir-se também num benefício humano e social mais visível.
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