Deve estar para breve o momento em que a tecnologia deixará de precisar de nós. Em que o nosso livre arbítrio de pouco servirá, pois já tudo foi decidido por algoritmos. Em que não precisaremos de pedir para ver, ouvir, sentir, provar ou tactear – isso ser-nos-á servido pela inteligência artificial.
Deve estar para breve o momento em que a tecnologia nos dirá em que sites confiar, que programas escolher na máquina de lavar, qual o banco em que abriremos conta. Não que confiemos na tecnologia – ela apenas será tão evoluída que não conseguiremos ter qualquer domínio sobre ela, ou avaliar da sua verdade.
Deve estar para breve o momento em que tudo será comprado pela Internet, em que todas as roupas nos servirão automaticamente, o nosso rádio tocará apenas o que nos fizer sentir bem. As nossas emoções serão moduladas por linhas de código. Já nem o nosso ADN nos pertencerá, um dia destes. As marcas saberão de antemão o que queremos adquirir, o sexo dos bebés antes de os pais o saberem.
O nosso carro irá conduzir por nós, mesmo que nos seja dada a sensação de poder realmente conduzir. Os serviços públicos serão digitalizados até à medula, a contabilidade pessoal e empresarial será controlada por software.
A tecnologia de amanhã canibalizará, sem piedade, a que acabou de ser construída hoje. Os pontos de referência serão esbatidos, o primeiro beijo será pela Internet, o ser humano vai progressivamente esquecer a palavra “novo”. A robotização será o rosto visível da tecnologia, os chatbots dir-nos-ão bom dia. Aquilo que julgamos ser de “fonte segura”, não será mais do que o resultado de desinformação. A realidade será construída pela tecnologia e será aquilo que ela nos deixar espreitar.
Tenho para mim que nós não mandamos na tecnologia. Nós estamos a munir a tecnologia com todos os artefactos do nosso engenho, para que ela mande em nós cada vez mais. Diferentes afluentes da sociedade, em nome do “avanço tecnológico”, estão a alimentar um rio grande demais e pouco navegável. A tecnologia é um corpo coerentemente desorganizado, mas poderoso quando visto no seu todo. Obriga o recém nascido a interagir com um tablet, ou o pastor das serranias a meter o IRS pela Internet. E conforme vamos dizendo amém, complacentes, ao desenvolvimento desenfreado da tecnologia, mais nos envolvemos na sua teia.

Quem me conhece, sabe que adoro o mundo tecnológico. Mas isso não me tolda algum criticismo. Talvez devêssemos fazer um referendo (que está na moda) para saber se precisamos MESMO de tanta tecnologia. Ou de um novo sistema operativo, quando ainda nem o anterior conseguimos dominar.
Quando se diz que compramos mais livros pela Internet, não devemos assumir isso como uma declaração de que gostamos de comprar livros pela Internet. Houvesse uma livraria na nossa cidade, com uma colossal variedade de títulos, e muitos trocariam a compra online por uma visita à loja física.
A “tecnologia de rosto humano”, tão querida à publicidade das empresas de tecnologia, não é mais do que um chavão. As tecnológicas apresentam discursos motivadores, apregoam que a experiência do cliente é a sua proposta de valor, com eles a pessoa está em primeiro lugar, assumem-se como incubadoras de sonhos. A “tecnologia de rosto humano” é ideal para o ego dos clientes, provoca-lhes boas sensações, apontam ao coração e ao afecto. Talvez seja o discurso correcto, na medida em que não é a tecnologia em si que nos atrai, mas o que podemos fazer, ser, dar a conhecer com ela. Resume-se tudo aos nossos interesses, preferências, prazer ou imagem social.
Tudo isto está muito certo, sim senhor. Mas algo está profundamente errado, sabem o que é? É que a maioria das empresas tecnológicas valoriza o ser humano, assume que o ser humano é o seu moto, mas não tem nos seus quadros qualquer profissional das Ciências Sociais e Humanas. Têm designers gráficos, developers, programadores, engenheiros de variados domínios, matemáticos, estatísticos, web designers, especialistas em Java, SAP, PHP, Python, Ruby on Rails, gestores de projectos, SCRUM Masters, social media managers, content creators, SEOS, certificados em Google Adwords, fazedores de apps e muito mais. Todos estes profissionais são (e deverão ser) o núcleo operacional de tecnológicas consagradas e startups. Mas não se pode ter tecnologia de rosto humano, se não existirem sociólogos ou psicólogos nessas empresas a apoiar, especialmente, nos departamentos estratégicos. E é isso que está profundamente errado.

A tecnologia, só porque sim, é um constante tiro ao lado. Empresas de Big Data especializam-se em obter cada vez mais dados, mas não estejamos seguros de que sabem o que fazer com eles. Na era dos telemóveis, a experiência mostrou que da infinidade de funcionalidades, as pessoas privilegiavam 4 ou 5. Na era dos smartphones, ocupamos o armazenamento com apps a mais e utilização a menos.
A Experiência do Consumidor é, por uma qualquer miopia digital, cada vez mais associada a uma experiência “online” e “mobile”. Fixem isto: dificilmente uma “experiência online” será contada aos nossos netos, mas experiências de carne e osso… essas serão imensas. A mesma miopia digital parece criar um viés nos “estudos de mercado”. Há um claro viés para enaltecer os números fantásticos do digital, como se o mundo fosse mais digital do que humano. Mais: muitos dos estudos que louvam o digital e oferecem números apetecíveis, não são mais do que empresas tecnológicas… que irão lucrar com o deslumbre que os números causam nos mais incautos. Em contraponto, há outros estudos que nos dizem que a C-suite (mesmo a americana), não é tão high tech como se pensa. Afinal existem mesmo gestores de marketing que não se entendem com a tecnologia. Alguns são uns hereges, nem perfil no Facebook têm (momento irónico deste texto).
A própria morte das lojas físicas é uma falácia. Mesmo nas sociedades mais evoluídas, a visita à loja online é mais importante na pesquisa do que se vai comprar, do que na compra em si, que continua a ser na loja. O mais provável é mesmo que o online seja uma componente da loja física, e não o contrário. Quando o retalho do futuro (shopping centres incluídos) se aproxima cada vez mais de um showroom, penso que é natural esperar que hajam vários displays online na loja, e que a pesquisa seja aí realizada. A vantagem? O produto real está logo ali, e pode ser adicionado a um shopping cart virtual, para levantamento em armazém ou entrega em casa.
A tecnologia não pode viver numa redoma, alimentando-se a si própria com mais tecnologia. Alimentando-se apenas de profissionais em tecnologia.

Portugal é reconhecido como um país que passou de uma mentalidade agrária para uma mentalidade terciária. Mais, neste momento dá cartas lá fora no que à tecnologia diz respeito. Mas deixo um conselho às grandes e pequenas empresas de tecnologia: uma vez por ano, como quem não quer a coisa, ofereçam um mês de estágio a um coreógrafo. Ou a um decorador. Ou um escritor. Um psicólogo. Um especialista em linguagem corporal. Um sociólogo. Um defensor de causas. Melhor: ponha esta gente toda a trabalhar ao mesmo tempo e dê-lhes tecnologia para brincarem.
Nem imagina o quanto vai crescer por dentro. Offline.
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